29.3.09

21.3.09

A Ucrânia

Compreende-se agora, quando se progride na leitura, porque se chama O Apocalipse dos Trabalhadores. Valter Hugo Mãe traz à nossa literatura Andriy e Sasha e a Ekaterine, de Korosten, perto de Chernobyl, na Ucrânia. Andriy emigrado para Portugal, o ser mecânico, robotizado, de quem o país emprega os robustos músculos e a rotina de não pensar, que não lhe querem o pensamento nem sentimentos mas, no trabalho braçal, só a mecânica dos gestos, de quem Quitéria se serve do ritual de cada um dos actos que no sexo se aplicam, essa satisfação necessária.
É uma história em que há também Maria da Graça e o senhor Ferreira e o seu pai, tetraplégico, «quadrúpede de tristeza», e a guarda de polícia Quental, a monotonia e o desejo, mais o emprego de carpideira e o trabalhar nas obras, tudo em Bragança, em Vinhais, em Portugal, que na história é o nome de um cão.
É um livro magnífico de gente «com vontade de não se ver existir».
Lia ontem, voltado ao livro, para chegar a «sete milhões de ucranianos morreram à fome nos anos trinta e dois e trinta e três do século vinte», mais «os sete milhões de mortos na segunda guerra mundial», e os mortos mais os afectados pela catástrofe de Chernobyl.
Foi então, com vergonha de ser humano e de ter vivido neste século que, comigo, «na cozinha dos Shevchenko sentavam-se mais de catorze milhões de mortos a olhar para os pratos de sopa». Com fome.
Ei-los enfim chegados à literatura e aos campos de trabalho: os ucranianos e a raiva de sobreviver. Obrigado pela memória e por escreveres tão bem.

19.3.09

A lei do descanso

Imagina-se no Franz Kafka depressão, melancolia, um universo concentracionário, os tectos baixos. Bem, os tectos baixos existem. Quando Josef K. entra na sala de interrogatório, um salão familiar adaptado a tribunal, instalado improvisadamente numa casa de habitação - onde é que eu já vi isto? - todos os da magna assembleia «eram forçados a inclinar-se para se manterem de pé e batiam com as costas e cabeças no tecto», pelo que «alguns tinham trazido almofadas que haviam colocado entre as suas cabeças e o tecto para não se esfolarem».
Ora, estando já a sorrir com esta pictórica descrição, não se espera é que se solte o riso quando se lê que a menina Elsa, que de noite trabalhava como criada numa taberna, «durante o dia recebia as suas visitas metida na cama». O que se compreende, pois há o direito ao descanso: o que puderes fazer deitado não o faças sentado, o que puderes fazer sentado não o faças de pé.

18.3.09

O regulamento

«Ultrapasso a minha missão ao falar-lhe tão amistosamente», disse o polícia a Josef K., acrescentando, ao referir-se ao seu colega: «também ele o trata simpaticamente à revelia do regulamento». É assim em O Processo de Franz Kafka: a amabilidade é uma irregularidade, a denúncia uma calúnia que solta os mastins da lei.

9.3.09

A redenção

Há no filme O Leitor tantos aspectos de magnificência humana que isolar um só é um atentado contra a suprema arte de ter sabido contar assim aquela pungente lição de humanidade. Mais do que uma história sobre a culpa alemã, ele é uma fábula sobre a inocência do Homem, sobre a redenção possível. Esta noite a lua enchia os céus e os corpos da abundância da renovação.

8.3.09

Era uma vez

Uma biblioteca desmorona-se, um homem morre. O arquivo continha manuscritos de Karl Marx. Há quem pense que a cultura é perigosa e que o marxismo mata. Ontem revi uma grande parte do filme Violência e Paixão do Visconti. Tudo começa em torno de uma biblioteca. Também ali o velho palácio ameaça ruir. Mas a história é bela. O professor vence a solidão e descobre a alegria de viver. A vida triunfava no momento em que, com sono e constipação, deixei o resto para depois. Como não me lembro da narrativa tudo pode acontecer quando retornar ao filme. Espero que acabe bem. Há um momento em que a esperança nasce em que ao menos uma vez as histórias acabem bem. Uma última vez.

7.3.09

Um engate

A boa escrita é um engate. Prende-nos como um anzol, vai-nos dilacerando a carne ao arrastar-nos. Retomei hoje a leitura. «Fazem-me mais triste, eu sei, mas estiveram sempre convencidos de que a obra que deixaram me haveria de fazer feliz», pensava Maria da Graça, a personagem de Walter Hugo Mãe, a mulher-a-dias, que entregava o corpo e o tempo ao senhor Ferreira «com o maldito categoricamente afirmando que lhe punha as mãos pela oportunidade», devolvendo-a, «assim conspurcada ao marido». Uma escrita poderosa, ágil, funda, a contar, toda em minúsculas, que «o amor criado assim, a partir de quem se odeia, é o pior, dizia-lhe a quitéria, é como lutar com a sombra». O livro chama-se O Apocalipse dos Trabalhadores. Não lhe conhecia outro livro. Agora, quando este se esgotar, irei a todos.