29.11.08

A companhia esperançada

Voltei ao Ruben A., às suas memórias, ao livro O Mundo à minha procura. Terminara o volume segundo, arrastava-me pelo terceiro, interrompera-o. Recomecei hoje, umas folhas apenas. Chove copiosamente. Chego à busca de casa, às reticências de tia Teodora, talvez por uma coisa melhor, casa mais ao pé, ela que «esquecia-se que o Amor não pode esperar, é já, já, já» e assim, ei-lo, o homem que escreveria Silêncio para Quatro e que um fulminante ataque liquidaria, desgostoso de todos nós, na companhia esperançada de um segundo amor depois de tantos amores, de chaves na mão, na página trinta e cinco, livre trânsito ao desejo de casar, as chaves, enfim, do «albergue de um já já». Na Praça D. Pedro IV, na cidade do Porto.

26.11.08

Ataraxia

Mihail Eminescu, foi um expoente magnífico da poesia romena. Hoje quem o conhece? Victor Buescu, o professor a quem se deve a nobilitação da cultura da Roménia no nosso país, na década de quarenta, traduziu-o. Carlos Queiroz, o autor da extraordinária Epístola aos Vindouros, que a morte levaria aos 42 anos, com desvelo converteu a tradução em poema branco, a ler em língua portuguesa.
Foi-me assim possível, ontem, refugiar-me em busca de abrigo na Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian, e ter ali por companhia os sentimentos e o pensar desse «latino do oriente», um dos tantos então «naufragados no tenebroso mar eslavo».
Eminescu morreu com 33 anos. No texto de apresentação da obra, Mircea Eliade, resume-nos a biografia. Nele «o instinto da liberdade era mais forte do que o instinto da conservação».
Li, entregue à paz dos livros, como o eremita confiado à guarda do «Deus que transmudou o Caos no Cosmos» uma das Odes. Copiei-a, letra a letra, incerta a caligrafia, para a trazer para aqui, como quem transporta água de uma fonte, com receio que ela lhe escorra toda entre os dedos antes de a dar a beber a quem tiver sede: «Quando nada imortal, nem a morte existia/Nem um núcleo de luz onde se gera a vida/Nem amanhã, nem hoje, nem ontem, nem sempre/Porque Uno era tudo e tudo era Um só ser/Quando a terra e o céu, o ar, o mundo inteiro/se integravamm em tudo o que nunca existiu/Só Tu eras então».
Reintegrado com a vida, regressei a casa. Algum tempo depois, a Natureza chorava copiosamente uma tarde de chuva. O «tambor grandiloquente da rima», martelava-me a cabeça.

23.11.08

A luz nocturna

«Obrigado pela companhia que a sua escrita faz a tanta solidão», disse ela. Tímido, por ter diante de si a totalidade do mundo num só sorriso, embaraçado por nem saber como se agradece um tal favor de verdade, carregando agora o fardo pesado dessa inesperada importância, agradeceu. Tenta hoje lembrar-se como. Mas ficou só a luz nocturna da frase, esse farol a encandear os olhos. Hoje quando escreve já nem lhe dói o ser visto, sim o que os outros possam ver. Aconteceu isto há uns dias, como poderia ter acontecido em cada momento até agora que penso nisso.

20.11.08

A ilusão dos livros

Era uma grande livraria, um grande espaço, um grande edifício, um grande projecto. Esta noite soube que se tinha entregue à falência.
É esta a caricatura final dos sonhos de grandiosidade. Depois é a ilusão dos livros, a transportarem-se para o mar da realidade, como as nuvens no céu a desfazerem-se em chuva.
Esta manhã a floresta do que poderia ter sido deu nos papéis rasgados de uma história que se poderia ter evitado. A Byblos fechou. Esta noite passada.

17.11.08

A fábrica de ídolos

Precisamente por andar a ler a Manhã Submersa do Vergílio Ferreira lembrei-me que tenho a sua fotobiografia, que o Helder Godinho e o Serafim Ferreira organizaram para a Bertrand. Fui ver, pois de memória tinha presente que ali se referia o filme que o Lauro António realizara sobre o livro auto-biográfico onde relata a passagem pelo seminário e no qual o autor da Aparição faz o papel do Reitor. Assim é e na página respectiva vem este excerto da Conta Corrente, o diário bilioso que foi ruminando entre Lisboa e Fontanelas: «Espantoso. Tenho sido cumprimentadíssimo pela minha aparição na TV, na série da Manhã Submersa. Faço o papel de Reitor, tenho sido felicitadíssimo. No restaurante onde hoje fomos, vários olhares fixos em mim, a identificarem-me. Há quarenta anos a escrever livros. Pouca gente deu conta. Mas só com duas intervenções na TV, sou quase tão célebre como um futebolista». Eis a fábrica de ídolos na sua melhor expressão, surpreendida em plena laboração.

16.11.08

O silêncio

Vi-o reeditado e fui buscar a minha edição antiga, ainda da Bertrand. Tinha sido escrito em 1953. A edição do meu exemplar já era a 23ª. Vim a lê-lo em viagem, a ver em cada palavra uma nódoa negra de uma vida dorida, a cicatriz de uma ferida salgada pela memória. E, no entanto, é a história de um rapaz.
Vergílio Ferreira esteve no Seminário da Guarda. Manhã Submersa é disso o testemunho. Só que esta constatação banal é uma ínfima gota de água no revoltoso rio dessa torrencial lembrança de que a escrita é explêndida Literatura. Livro sobre o sacerdócio, é mais um livro sobre a expiação dessa culpa de a Fé não ter resistido à Igreja, a vocação não ter suportado a Esperança. Podia ser, no entanto, um livro sobre o enamoramento e suas mágoas. Nada mudaria.
Há no coração deste rapaz a falta de uma Mãe, no seu corpo a falta de uma Mulher. Viveu substituindo esses amores desejados pelo cumprimento dos seus deveres. De joelhos até já não ser mais possível. A sua prece era o silêncio.

13.11.08

A manhã entardece

Há livros de que só se repara no título depois. O último livro que Nuno Júdice publicou chama-se O breve sentimento do eterno. «O que é triste é para ser. Acontece». É um dos seus versos.