21.1.07

Alucinado

Hoje andei a entregar cartas. É bom isto, o fazer de paquete, e saber assim onde são as portas e quem as abre. Nada como o trabalho braçal para que os intelectuais saibam quanto custa a vida ao povo, dizia o presidente Mao. Foi por isso que dei com ele, a farda cinzenta de segurança, uma barba a revelar cansaço, dentro do seu casinhoto, conformado, neste entardecer de domingo, fumando, tranquilo, o seu cachimbo. Lembrei-me da lagarta do Alice no País das Maravilhas, lançando ondas multicolores do seu hookah, numa antecipação psicadélica com que a mente genial de Walt Disney enriqueceu o primitivo desenho de John Tenniel. Lembram-se da história: metade do cogumelo fazia crescer, a outra metade encolher. No caso dele, estava do lado menor da vida, recebendo cartas, entre fumos de resignação.

18.1.07

A próxima vez

O senhor Artur estrebuchava, aflito, os seus oitenta e tal anos tornados naquele escanzelado corpo, em convulsões. Entubado, a respirar artificialmente, monitorado em todos os sinais vitais, ei-lo qual peixe moribundo em busca de ar. Nervosa a máquina de vigilância gritava como uma sirene de bombeiros, a luz vermelha piscava insistente. «Tenham calma, tenham calma, que ele aguenta-se», comandava um médico, no que parecia a antevisão do improvável, tais eram os gritos da máquina, o chiar, trepidante, da maca, os ossos, trémulos, num feixe de dor. «Senhor Artur, senhor Artur», chamava-o, crispada, a enfermeira, a voz da própria vida a reclamá-lo. Lentamente, o senhor Artur, parou de tiritar. Abriu de súbito os olhos como se surpreendido com todos e de todos ausente. Regressara até nós, e ficaria connosco à espera da próxima vez. Feliz comigo, dei-me alta. Cá fora o mundo pareceu-me um pouco melhor.

12.1.07

Alma comburente

Começo a suspeitar que há por aí uma Natureza demoníaca e viral que se tenta apoderar dos corpos melancólicos e se diverte a esfacelá-los. Amassa-lhes a ossada, para que acordem bem moídos com a pancada que deviam ter levado por conta dos pecados ainda impunes, faz-lhes chegar a noite a tiritar sem ter febre. Um tipo mesmo com bonomia na alma e humor não bilioso não se salva. Hoje acho que consegui escapar, fugindo para a rua, quase em pijama. Em frente a mim um casal de namorados beijava-se, febril. Eis uma forma de se ter saúde, o corpo animado em combustão!

6.1.07

O legado de Hemingway

O médico chegou-me, enfim, na forma de um livro. Ireneu Cruz, médico gastrenterologista, escreveu um estudo sobre a morte, por suicídio, de Ernest Hemingway. O autor de «O Velho e o Mar» e controverso prémo Nobel da Literatura, teve um final de vida decadente, a sua estrutura física minada pelos excessos de vida, o seu psiquismo possuído pelo desejo libertador de morte. Perdida aos poucos a memória, incapaz de escrever, Hemingway viveu a longa agonia de um sofrimento atroz, até que um dia, com um tiro de caçadeira se restituiu à paz. Numa das suas cartas confessou sentir-se perseguido por um esgotamento nervoso assassino.
Neste seu estudo o ilustre médico pergunta-se, entre outras coisas, se não teria sido o tratamento que lhe foi instituído para debelar a hipertensão a causa da depressão que o liquidou.
Interessante exercício necrológico, autópsia sobre a morte surpreendente, eis a medicina que salva, a medicina que mata.
O livro chama-se «Hemingway, o seu último legado». O legado, a sua dádiva, teria sido morrer, pois ante isso «redobrou-se a atenção clínica para uma mais cuidadosa avaliação e prevenção dos efeitos colaterais dos fármacos» usados no seu caso. Em nome dos que ainda não fomos mortos pela cura, obrigado, pois, «Papá».

3.1.07

Tussa pois!

Aquela anedota do Raúl Solnado do sujeito que vai ao médico e este lhe diz «tussa» e ele tosse, ao que o médico repete «tussa outra vez» e ele de novo tosse, ao que o médico, enfim, lhe diagnostica «o seu mal é tosse», eu vou mandar encaixilhá-la como o diagnóstico por antonomásia. No mais, descobri outra coisa: o nosso organismo tem uma capacidade inata de se curar, mesmo sem remédios, sobretudo sem eles. Às vezes morre-se da cura, ou do esforço de tossir. Mas é, como diria, mais ecológico e, ao menos nisso, estamos com o politicamemte correcto! Tussa, pois!

1.1.07

Só pode ser no gozo!

Primeiro dia do ano, segunda-feira. Normalmente é a altura de se prometerem coisas novas, normalmente a nós próprios, assim mesmo sem grande convicção e prudentemente sem testemunhas. Desta vez resolvi prometer que na próxima incarnação vou ser feliz. Nesta já não tenho tempo a não ser para tentar ainda, se possível, viver contente.
Prometido que está, vou tentar começar na próxima semana: nesta bem gostaria de me iniciar no contentamento, mas para além das adversidades, contratempos e má catadura, há os outros, os que acham que agora é a vez deles gozarem a vida e, claro, nesta vida não há gozo que chegue para tantos!